terça-feira, 20 de março de 2012

Despedida

Voltou da casa dos mortos esvaziada. A alma oscilando entre um mundo e outro, sem conseguir pousar firme naquele corpo que caminhava. Lembrava dos olhares e expressões dos vivos que ali sentiam doer suas perdas. Os olhares perdidos, vagantes. Numa espera por sentido, por aconchego, por últimas palavras não trocadas. Esperamos sempre, mesmo sem nos darmos conta, pela eternidade alheia. Tomamos por óbvia e certa a vida vivida de todos os dias. Não esperamos de repente não contar mais com ela. Baita traição. Traição da vida, a morte.

Zanzou pela cidade procurando por si mesma. Havia deixado de si tantos pedaços naqueles longos abraços, que já não conseguia encontrar seu centro. Parou e buscou. Foi tomando ventos e voltando a si. Pensava naquela de perda mais intensa e profunda, naquela que perdera sua ancestralidade naquela morte. Sua serenidade bonita e segura, sua tristeza apaziguada. Fortaleceu-se na lembrança daquela força infinita e doce, infinitamente doce, e pediu que a vida não traísse nunca aquela doçura. E desejou aprender dela também a certeza da continuidade e a capacidade de saber o fio invisível que não se rompe nas idas e vindas de nossos corpos.

E pensou que é tão corpórea a nossa existência, tão física a nossa saudade e tão palpável a realização da nossa humanidade, que nos custa sentir o que nos circunda etereamente. A metafísica da vida.

Desejou estar menos plantada na terra, porque essa terra de repente pareceu pouco capaz de conter tanta vida. Desejou defender menos esse mundo indefensável. Desejou existir pelo belo, pelo impalpável, por aquilo que se sente e que não se explica. É por isso que se existe afinal. Ou não?

Mas sim. Deixando a casa dos mortos, ela foi se esvaziando aos poucos do etéreo, do metafísico. Foi aos poucos se deixando corporificar novamente. E seguiu caminhando por entre a concretude dura e desagradável da vida, testando os passos, firmando o foco. De volta à casa dos vivos, esse imenso mausoléu.

E, da morte, guardou esse som de silêncio, essa sensação de vazio, essa canção que falava de sonhos e de homens que não envelhecem. Guardou bia. Povoou-se de bia.