domingo, 23 de outubro de 2011

1027

Talvez o assunto já tenha esfriado, mas tem ecoado na minha cabeça há alguns dias - gestação de idéias e concatenação de sentimentos. O caso é a troca do soldado israelense Shalit por 1.027 prisioneiros palestinos.

Para começar, quero dizer que escrevo como uma judia brasileira, agnóstica, às vezes atéia, às vezes tomada por uma fé camaleônica que não tem templos nem hierarquias. Uma judia de família misturada. Judia de judaísmo diluído, difuso, o que, no meu caso, significa uma construção identitária que recupera traços culturais difusos e levemente opacos de um judaísmo herdado de minha avó. Significa que reconheço em mim alguns valores predominantemente judaicos; que reconheço o meu pertencimento a esse grupo e o significado histórico desse pertencimento. Meu judaísmo diluído, finalmente, não encontra ressonância no Estado de Israel, não encontra identidade com a construção dessa nacionalidade e menos ainda com o fanatismo religioso que parece predominar no discurso hegemônico que dali emana.

Dito tudo isso, me posiciono diante do caso Shalit. Porque me impactou mesmo. Me impactou a vida de um israelense valer as 1027 vidas palestinas. Me impactou a história desse um soldado israelense se transformar em seriado de vários capítulos nos jornais do mundo inteiro, enquanto nada ou quase nada se falava das 1027 histórias do outro lado. Me incomodou profundamente que esse um soldado israelense tivesse o direito ao nome, à família, à história prévia e futura e à comoção mundial, enquanto os 1027 palestinos por ele trocados conformassem uma massa disforme, da qual ninguém nada conhece.

Quem são essas 1027 pessoas? Por que estavam presas? O que é de suas vidas, de suas famílias? Quem se comove por elas? Sua luta e sua liberdade não são também emblemas possíveis de um processo já fictício de construção de paz?

"É diferente", eu ouvi de algumas pessoas. "Shalit foi sequestrado. Não era um criminoso. Os palestinos eram criminosos, terroristas". Certo. Mas e daí? E daí que é diferente? Essa diferença significa alguma coisa de fato nesse contexto absurdo de ódio perpetuado, de segregação, de desumanização de um povo?

Às vezes a construção de uma identidade pode nos conduzir por um caminho paradoxal de perda da habilidade de conectar-nos em nossa humanidade. Concentramo-nos tanto no fortalecimento e na afirmação da nossa identidade - na demarcação de seus limites, no direito às suas especificidades e à sua plena existência - que terminamos por constituir-nos como espécies de sobre-humanos. A afirmação da nossa diferença, ao invés de devolver a nossa humanidade, termina por subtrair algo da humanidade alheia.

No caso da troca de prisioneiros entre israelenses e palestinos, meu judaísmo diluído me conectou com mais força aos 1027 anônimos que ao soldado israelense, judeu como eu. Porque meu judaísmo diluído me remete a uma existência de segregação, de opressão, de perseguição; me remete a um projeto de paz e de existência plural. Meu judaísmo diluído conservou em mim a lembrança histórica herdada e a capacidade de extrapolá-la a outras identidades, a outros povos, a outras lutas. Porque as tragédias e as dores humanas, se não as partilhamos tod@s, nos desumanizam. E se tem uma coisa que meu judaísmo diluído e difuso me deu foi uma consciência viva e presente da minha frágil e trágica condição humana. Demasiadamente humana.

4 comentários:

  1. Bem dito, Ninoca, como sempre.
    "É diferente... Shalit foi sequestrado. Não era um criminoso. Os Palestinos eram criminosos, terroristas." Bem, analisemos. Shalit não era um criminoso porque vestia uniforme do Exército Israelense. Mas todos sabemos que esse mesmo exército diariamente desrespeita leis internacionais. Talvez Shalit não seja criminoso, mas a instituição a qual representa é. Por outro lado, os Palestinos não têm Estado reconhecido, nem exército (e que seja desmilitarizado é condição inegociável para reconhecimento de seu Estado por parte de Israel). Ou seja, até mesmo crianças que atiram pedras são consideradas criminosas, e cumprem pena nas prisões israelenses. Imaginem civis (já que militares não existem) adultos que resistem a ocupação. Com isso não quero dizer que todos os 1027 não sejam criminosos, terroristas, pois há evidências que muitos de fato são. Mas muitos também têm resistido pacificamente a ocupação, sendo presos pelo que dizem, pelo que fazem em atos pacíficos de resistência.
    E é aqui que volto a concordar com você. "Quem são essas 1027 pessoas? Por que estavam presas?". Talvez as respostas a essas perguntas nos mostrariam que há muito mais na Palestina que terrorismo...
    O que me leva a compartilhar com você esse video da cineasta brasileira Julia Bacha sobre resistência pacífica na Palestina (http://youtu.be/iYwAMccbhYs). E também a "Prisioner of the Day Campaign", que dedica um dia à história de cada um dos milhares presos palestinos, incluídos ou não entre os 1027 (http://lifeonbirzeitcampus.blogspot.com/2011/10/prisoner-of-day-majd-ziada.html).
    Beijos com eterna admiração, Jô

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  2. E mais...
    "Mas e daí? E daí que é diferente?". E se fosse mesmo o caso de todos esses 1027 serem criminosos e terroristas, tiraria deles o direito à sua humanidade (como você diz)? Cutuquemos um pouco mais e nos perguntemos o que os teria levado à criminalidade e ao terrorismo.
    O que me leva a associar tudo isso com o Brasil, com o ódio que se tem dos "marginais e bandidos" atochados nos horríveis presídios, culpados de todos os males de nossa sociedade. Cutuquemos e nos perguntemos por que estão lá...

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  3. Seu texto demasiadamente humano levanta muitas questões, Ninoca. Adorei tanto o texto como o comentário da Joaninha, que era exatamente o que eu pensava comentar: sobre ser criminoso ou não no estado de tensão permanente que se vive naqueles pedaços de chão disputados por israelenses e palestin@s. E também me fazia a pergunta seguinte, logo depois: e se fossem criminosos? Assim devem ser tratados os criminosos, como anônimos, sem rosto, nem nome, nem história? Ver a menção da Jô aos presídios brasileiros só completa a reflexão. Ou melhor, nos faz continuá-la...
    Lindas, adorei! Beijos e saudades!

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